Minha lista de desejos para o futuro do mercado editorial
(Ou: a modernização é mais uma constante que um milagre bíblico.)
Acabei atrasando a newsletter, mas foi por um bom motivo: meu irmão se casou no começo do mês, e passei essas semanas aproveitando os familiares que vieram para a cerimônia (e me recuperando da festa, socorro 🫠).
Vamos direto ao texto principal porque vocês me mandam cada pergunta difícil! (Eu amo, não parem… mas podem enviar questões mais simples de vez em quando também hahaha.) No final indico oportunidades para escritores e tradutores iniciantes, e recomendo um bom texto para entender o preço do livro.
Passado, presente e futuro
Acredito que o mercado é baseado nas pessoas do "velho testamento", poucas marcas estão sendo renovadas para o futuro e pensam em incluir esse futuro.
Como você acredita que as editoras, livrarias, distribuidoras e gráficas devem pensar para fazer essa mudança? Como nós (público consumidor ou até fornecedor) podemos fazer para que elas deixem de ter esse "preconceito" com o novo? Quais são as boas práticas ideais, sendo do marketing, vendas, Recursos Humanos...?
Anônima (São Paulo, SP)
Cara Anônima,
Acho que essa é a pergunta de um milhão de dólares, não é? Todo mercado precisa se modernizar, estar disposto a rever suas práticas e pensar em novos caminhos. Eu acredito que temos pessoas incríveis, em todas as áreas do mercado, que se importam com isso e estão fazendo o que podem. Mas eu sou otimista, não inocente: eu sei que é uma indústria mais resistente a mudanças que a média (e se eu achasse que está tudo funcionando lindamente, não precisaria ter criado essa newsletter pra tirar dúvidas de vocês, não é mesmo?). Então vou tratar sua pergunta como uma oportunidade para fazer alguns pedidos para o Papai Noel da Modernização do Mercado Editorial:
1) Eu queria que nosso mercado parasse de agir como se só uma coisa pudesse ser importante de cada vez. Essa mentalidade de “preciso descobrir qual é o bar do momento” só serve pra fazer com que a) a gente perca a perspectiva de que tem vários bares fazendo sucesso ao mesmo tempo, a cada momento, b) nos sintamos numa corrida eterna atrás da “próxima moda” em vez de valorizar as coisas incríveis que já estão aqui, c) as pessoas alçadas a esses 15 minutos de fama sejam injustamente descartadas assim que a pauta não estiver mais fresca, d) exista um ambiente de hostilidade entre pessoas e segmentos que poderiam se aliar, já que qualquer novidade é vista como uma ameaça a esse espaço efêmero que você conquistou (ou que poderia conquistar se não estivessem “tomando seu lugar”).
2) Eu queria que as editoras enxergassem livros diferentes como uma oportunidade de conquistar novos leitores e ampliar o mercado, não como um empecilho porque “não é o que vende”.
3) Eu queria que editores e críticos parassem de avaliar literatura de gênero a partir de critérios que são da ficção literária e usar isso como “prova” de que não são bons livros. Cada gênero literário tem suas próprias regras, e eu acho bem óbvio que, se você escrevesse um livro, ia querer que ele fosse avaliado pelo que está no papel e pelo tanto que você foi bem-sucedido dentro da sua proposta – e não pelas suas falhas em executar a proposta que outra pessoa prefere. (Também agradeço se as resenhas pararem de criticar livros populares como se o autor tivesse que pedir desculpas por fazer sucesso.)
4) Eu queria que o mercado como um todo parasse de tentar convencer as pessoas de que devem ler um livro porque ele é importante, e que em vez disso sentassem para avaliar se a comunicação daquele livro passa alguma informação sobre por que ele é interessante.
5) Eu queria que as pessoas percebessem que existe uma visão rasa na qual literatura infantil = educação, literatura para adultos = cultura, e literatura para jovens = entretenimento. E que isso é um desserviço para as literaturas de todas as faixas etárias, que deveriam ser livres para navegar entre esses três propósitos, sem serem menos relevantes por causa isso.
6) Eu queria que as pessoas deixassem de achar que o único mérito da literatura de entretenimento é vender. Eu queria que um livro de vampiros queer solucionando crimes no espaço que vendesse 3 mil exemplares fosse levado tão a sério dentro das editoras quanto um livro francês premiado que vendeu 3 mil exemplares. (E eu queria que ambos recebessem a atenção devida para atingirem seus leitores.)
7) Eu queria que todo mundo entendesse que dizer "nunca ouvi falar disso" como reação a algo que está fazendo sucesso me passa uma informação sobre você, não sobre a importância ou a qualidade de qualquer coisa. (E o Google tá aí pra isso.)
8) Eu queria que o mercado entendesse que livros com personagens não-brancos, LGBTQIA+ e de outras minorias não são um gênero, e não são uma trend. Eu queria que autores e profissionais de grupos minoritários não estivessem encontrando mais espaço no mercado justamente agora que o sistema está super sucateado. Eu queria que essas pessoas tivessem chances reais de ascender e se estabelecer, em vez de ficarem presas em situações onde têm mais responsabilidades que autoridade.
9) Eu queria que as pessoas entendessem que livros baratos não são a melhor resposta para o problema de acesso à leitura porque mesmo se, por um milagre, fosse possível vendê-los a 10 reais, ainda teria muita gente que não poderia comprá-los. Eu queria que a gente diferenciasse “democratização da compra de livros” de “democratização do acesso à leitura”, porque os dois não são a mesma coisa. Eu entendo completamente o desejo de ter uma estante com seus favoritos em casa, e torço para que todos possam ter isso o mais rápido possível. Mas o que eu quero para nós é um bom sistema de bibliotecas, com um acervo atualizado e bem gerenciado, disponível gratuitamente para pessoas de qualquer parte do Brasil. (Além de democratizar verdadeiramente o acesso, uma estrutura dessas é exatamente o que faria o preço do livro diminuir: saber que milhares de cópias serão compradas para serem distribuídas para bibliotecas de todo o país faria com que as editoras pudessem aumentar a tiragem de seus lançamentos, o que reduziria o custo de produção de cada exemplar.) (Se você também quer ver mais atenção sendo dada às bibliotecas brasileiras, vou pedir que demonstre esse interesse tirando 2 minutos do seu dia para fazer o cadastro gratuito na BibliON, uma biblioteca digital que foi criada pelo Governo Estado de São Paulo, mas que está aberta para leitores de todo o Brasil.)
10) Eu queria que as pessoas que já estão há mais tempo no mercado olhassem para trás e enxergassem as dificuldades que enfrentaram como pontos que precisam ser melhorados, não como percalços que precisam continuar existindo para os novatos “provarem que merecem”.
11) Eu queria que as pessoas parassem de falar “o mercado editorial é x” quando elas querem dizer “as grandes editoras são x”. O mercado editorial são as grandes editoras mas também são as médias, as pequenas, as editoras de uma pessoa só, são vários profissionais autônomos correndo atrás de frila, são livrarias, gráficas e distribuidoras, são os escritores que publicam no KDP, o produtor de conteúdo que briga contra os algoritmos pra divulgar livros, o autor que imprime 100 exemplares pra vender na feirinha, o bibliotecário, o organizador de clubes de leitura... Se você trabalha ou está tentando trabalhar com qualquer coisa ligada ao livro, você faz parte do mercado editorial. E eu queria que as pessoas olhassem para os lados e pensassem no quanto a gente perde ao reduzir um mercado tão amplo a uma fatia bem pequena dele, e que insights poderiam vir de darmos os nomes certos às coisas.
12) Ainda dentro disso, eu queria que as pessoas entendessem que há várias formas de existir dentro do mercado e que nenhuma é automaticamente mais correta que a outra. O mercado tem vários modelos e ele é melhor por causa dessa multiplicidade. Uma história publicada digitalmente é tão válida quanto um livro impresso em capa dura; um autor que publica por uma editora tradicional é tão válido quanto um autor que leva seus livros embaixo do braço pra vender em eventos da comunidade; um diagramador é tão válido quanto um tradutor; um profissional que trabalhe com autoajuda é tão válido quanto um que trabalhe com literatura. Em vez de elencar tudo à nossa frente como melhor ou pior, seria mais produtivo se apenas reconhecêssemos como o que são: diferentes. Talvez isso fizesse com que deixássemos de nos enxergar como concorrentes para agir como colegas que têm os mesmos objetivos.
13) Eu queria que o mercado colocasse mais esforço em conhecer quem são os leitores. Não apenas como clientes, mas como pessoas. Eu queria que não houvessem mais tantos profissionais que acham que faz sentido dizer o que uma pessoa deveria estar lendo, ou do que ela deveria gostar... como se conhecêssemos o leitor melhor do que ele mesmo.
14) E eu queria que todas essas mudanças acontecessem sem que ninguém tivesse que trabalhar mais do que 40h por semana, e que todas as partes envolvidas recebem uma remuneração justa.
(Essa lista não esgota meus desejos, mas decidi focar em questões mais ligadas a novidades e modernização, não em problemas gerais do mercado. Sinta-se à vontade para adicionar seus próprios pedidos na caixa de comentários do post.)
Mas você também perguntou “Como nós podemos fazer para que elas deixem de ter esse ‘preconceito’ com o novo?” e eu vou ser sincera que grande parte do problema é exatamente essa visão que você trouxe de que existe um “velho testamento”, o que implicaria que há algo que divida as pessoas entre “do passado” e “do futuro”.
Anônima, todo mundo já se considerou o futuro. Inclusive quem você considera o presente. Inclusive quem você considera o passado. As pessoas que têm carreira estabelecida hoje em dia começaram enfrentando problemas que você talvez nem enxergue justamente por causa de esforços de quem já estava aqui antes.
O mundo gira, o mercado muda, e você precisa entender que também vai ser “velho testamento”, e mais rápido do que você imagina. Porque isso não vai acontecer daqui a 20 anos, ou quando você se aposentar. A verdade é que provavelmente já está acontecendo agora: é só você parar pra pensar em ocasiões em que achou que algum grupo estava exagerando, ou ficou exasperada com pessoas que pedem por mudanças sem entender as dificuldades com que você lida no dia a dia.
Pense em como você se sente quando isso acontece, Anônima. O que você gostaria que essas pessoas soubessem? Como preferia que elas tivessem se expressado? Carregue esse sentimento sempre com você, e será muito mais fácil 1) enxergar o melhor jeito de propor mudanças para quem já está no mercado há mais tempo, e 2) não reproduzir os mesmos comportamentos que te incomodam agora.
Eu acho que o mais importante, pra profissionais de qualquer idade, é ter consciência do quanto você não sabe (porque é impossível saber tudo) e agir com curiosidade em cima disso. É maravilhoso que estejam sempre surgindo pessoas com novos pontos de vista, que questionem as ferramentas atuais e que se importem o suficiente com o mercado para querer mudá-lo. Mas eu quero que você tenha a humildade de entender que você faz parte de uma grande sequência de mudanças, e que nada que você trouxer será definitivo também. Eu espero, Anônima, que você consiga ver isso como algo positivo: significa que você faz parte de algo maior, e que você não precisa se cobrar para resolver o mundo pra se sentir digna do seu espaço. Basta fazer o que puder, com as ferramentas que tiver ao seu alcance, e deixar a porta aberta para quem vem a seguir.
Indicações e aleatoriedades:
Para quem quer entender como o preço dos livros é definido, sugiro o texto que André Conti escreveu para a Folha de S.Paulo. Ele explica as contas e abre valores para responder à crítica de Felipe Neto de que as editoras estariam cobrando caro por ganância.
Estão abertas as inscrições para o Prêmio Malê, que todo ano seleciona livros de autores negros para publicação. O vencedor terá seu livro editado pela Malê (com adiantamento de R$ 5 mil), e os cinco finalistas receberão um relatório de leitura crítica e encontros de mentoria com escritores renomados.
A Pretexto vai abrir vagas para a terceira turma de mentoria de tradução. Serão três meses de acompanhamento, com encontros semanais ao vivo e feedbacks individualizados sobre todos os exercícios. Você pode registrar interesse aqui.
O Sesc Bom Retiro está com uma exposição de 47 artistas negros que fazem ilustrações para livros infantis. É uma boa oportunidade para encontrar novos nomes para futuros trabalhos.
Como pessoa fã de tofu (não ouse falar mal dele na minha frente!), eu adorei esse podcast (em inglês) que explica as teorias por trás da criação do queijo de soja, e como ele saiu da China para chegar ao ocidente (adianto que a história envolve Benjamin Franklin, um anarquista chinês fazendo roquefort de soja na França, e uma seita de hippies vegetarianos.)
A próxima questão é:
Eu sou designer gráfica e apaixonada por livros. Já tive a oportunidade de fazer capas e diagramar obras para pequenas editoras, mas... como funciona esse tipo de contratação para editoras maiores?
Bruna (Rio de Janeiro, RJ)
Até a próxima!
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