Minhas leituras favoritas de 2024
Eu aposto que você não achou que ia ler a frase "é basicamente um Jurassic Park pra resgatar morangos em vez de dinossauros" hoje.
Olá, estou de volta! Eu ia começar o ano entregando a tão prometida newsletter sobre curadoria e o que está por trás do trabalho de montar programação para a Bienal do Livro de SP, mas o que aconteceu foi que eu passei todos esses meses anotando coisas que queria comentar no texto. Aí eu sentei pra reunir todas essas anotações em um documento só… e ele ficou com oito páginas. Ops.
Eu me conheço bem o suficiente pra saber que só vou conseguir organizar todos esses pensamentos quando tiver essas oito páginas impressas na minha frente pra rabiscar, então enquanto isso decidi enviar uma newsletter mais fácil: fiquem com uma lista das minhas leituras favoritas de 2024!
Eu amo um bom tijolo. O trabalho e rotina me fazem ler vários livros ao mesmo tempo, e um após o outro, mas eu gosto de ter um livro grande na mesa de cabeceira e sentir que os personagens estão me acompanhando durante vários meses.
Um defeito de cor (Ana Maria Gonçalves, Ed. Record) é um exemplo perfeito disso. O livro é todo narrado como uma carta que a protagonista (Kehinde/Luísa Mahin) está escrevendo para seu filho (Luis da Gama). Então eu comecei a leitura intimidada pelas mais de 900 páginas mas elas fluíram tão fácil, porque era como se uma amiga estivesse do meu lado, contando tudo o que ela viveu na África e no Brasil, me apresentando as pessoas que ela conheceu ao longo das décadas, e narrando os momentos históricos e mudanças que ela presenciou. Ainda não consegui ir na exposição do Sesc Pinheiros, mas pretendo dar um pulo lá pra matar a saudade que o livro deixou.
Já Babel (R.F. Kuang, Ed. Intrínseca, tradução de Marina Vargas) era um livro que eu sabia que ia amar mas que precisaria ler com calma. Como pessoa de ascendência chinesa que trabalha com livros, não tinha como não me envolver por uma leitura que usa o poder das palavras (literalmente: os protagonistas geram magia através da tradução de termos de um idioma pro outro) pra discutir colonialismo. Eu nunca tinha visto uma obra que capturasse tão bem a frustração de viver em um mundo que acha que ser moderado é dar chance para o oprimido convencer o opressor a parar de atacá-lo. Que se diz racional ao colocar na vítima o ônus de provar (com lógica impecável e sem causar desconforto, senão você também está sendo violento, tsc tsc) sua humanidade, enquanto ignora que essas estruturas estão de pé por causa de ganância, não desconhecimento.
Essa mesma angústia também aparece em alguns momentos de Nossa parte da noite (Mariana Enriquez, Ed. Intrínseca, tradução de Elisa Menezes), que mistura o horror vindo do sobrenatural com os causados pela ditadura argentina. Confesso que conheço pouco do gênero, mas tenho buscado ler mais desde que descobri (com Gótico mexicano, da Silvia Moreno-Garcia) esse horror que explora a história latino-americana e que me deixa tensa por trazer à tona medos que já existem dentro de mim. Acabei virando fã da Mariana, tanto é que já dei um jeito de ler o livro de contos mais recente, e pretendo explorar os anteriores a seguir (com calma, porque eu preciso dar uma respirada depois de viver na atmosfera pesada das histórias dela).
Como tudo na vida é equilíbrio, entre uma leitura tensa e outra eu engulo romances de estilos diferentes. Eu sabia que Christina Lauren (Christina Hobbs + Lauren Billings) era uma dupla super famosa no mundo dos romances, mas não tinha lido ainda porque não tinha me interessado pelos livros mais conhecidos delas. O experimento do amor verdadeiro (Ed. Paralela, tradução de Alexandre Boide) me pegou pela premissa de uma escritora de romances que está em crise com o amor, e é convidada para participar de um programa de namoro estilo The Bachelorette. O convite parte de um pai solteiro que na verdade é documentarista e não entende nada de livros de romance nem de reality shows, mas precisa de um programa de sucesso pra ter o próximo projeto documental aprovado. Eu adorei que as autoras fugiram do clichê do “cara envolvido em assuntos sérios que desdenha da protagonista com interesses bobinhos”, e em vez disso criaram um interesse amoroso que admite que não entende nada do assunto e está interessado em aprender com a “rainha do romance” pra criar o melhor reality show possível (mesmo que isso signifique planejar episódios onde ela sai com concorrentes bonitões que ele mesmo selecionou para o programa…).
Cutelo e Corvo (Brynne Weaver, Ed. Arqueiro, tradução de Roberta Clapp) eu conheci em reunião com a editora e fiquei “como assim um romance entre dois serial killers?". Mas a Frini sabe ser convincente e aqui estamos nós. Eu estava curiosa pra ver como iam transformar serial killers em protagonistas de romance (ainda mais romance mainstream), e descobri que na verdade o livro tem bem menos gore do que pode parecer, e vai mais para a linha Dexter de “eles matam pessoas, mas só pessoas malvadas!”. De qualquer forma, eu me diverti muito com os dois criando um relacionamento em torno de admiração por táticas de tortura e mensagens sofisticadas deixadas para a polícia. Um bom jeito de saber se esse livro é pra você ou não é ler a lista de “aviso de conteúdo” que a autora montou. O modo como ela lista os tópicos (tanto ligados a violência quanto às cenas de sexo) é um exemplo perfeito do tom que você encontra no livro.
Na lista do ano passado eu falei de Mariposa vermelha, da Fernanda Castro, e agora ganhei mais um livro pra tacar na cabeça das pessoas falando “parem de seguir hypes gringos e leiam romantasia brasileira!!”. Estão preparados para uma declaração polêmica? Ok: eu gostei mais de Garras, da Lis Vilas Boas (Ed. Rocco), do que de Noiva da Ali Hazelwood. Vejam bem, eu gosto da Ali! Mas eu fui tão fisgada por Garras que comecei lendo devagar, pra fazer anotações de trabalho, e tive que desistir das anotações no meio porque eu só queria engolir essa história. Como eu poderia resistir a uma mulher com sangue nos olhos que propõe um casamento de conveniência pra se vingar da própria família? E a um lobisomem romântico cuja linguagem do amor é cometer incêndios criminosos contra quem ousa insultar a noiva chantagista? Eles são perfeitos juntos, gente.
Uma das minhas partes favoritas do meu trabalho com a Bienal é poder conversar com as várias editoras que participam do evento. Nesse processo, eu acabo conhecendo vários livros diferentes, e às vezes tenho a sorte de descobrir novos favoritos. Nevada (Imogen Binnie, Ed. Todavia, tradução de Fernanda Abreu) foi um deles. Nevada me lembrou muito de Só garotos, da Patti Smith, tanto pelo cenário cultural de Nova York, com uma protagonista que trabalha em uma livraria e menciona zines e autores underground, quanto pela sensação de estar vagando por aí, tentando descobrir quem você é e qual é seu lugar no mundo. Só que, em vez de viver na Nova York dos anos 60, os personagens da Imogen desabafam em seus livejournals e descobrem mais sobre si mesmos através de fóruns de internet.
Lançado originalmente em 2008, o livro se tornou um marco na literatura trans porque a autora decidiu escrever para pessoas como ela, em vez de tentar saciar a curiosidade de uma audiência cis. O resultado é uma narrativa que mostra as contradições, as dúvidas e as nuances dos dois protagonistas de uma forma que te fisga desde o começo. Acho que qualquer um que já pensou “plmdds, @universo, só me diz logo o que é pra eu fazer nessa vida” vai se identificar com os diálogos internos da Maria e do James.
Deslocamento e crises internas também aparecem em Vou sumir quando a vela se apagar, do Diogo Bercito (Ed. Intrínseca). Eu adorei o jeito como o livro mostra a vida de imigrantes que vieram para o Brasil na década de 1930. A promessa de um novo mundo, a comunidade dando a mão pra quem acabou de chegar, a saudade de um lugar que você sabe que também é cheio de problemas, a dúvida entre continuar tentando no Brasil ou voltar pro seu país e admitir que não deu certo, e tudo isso somado ao luto que o protagonista carrega... É um livro muito sensível, que me deixou curiosa pra ler os próximos trabalhos do autor. E eu provavelmente vou carregar esse trechinho comigo por muito tempo:
— Se você se importa tanto com o Líbano, por que não quer voltar?
Yacub também já tinha feito aquela pergunta a si mesmo, e esperou pela resposta de Jurj.
— Eu quero voltar, sim — disse. — Mas quero voltar para um Líbano que ainda não existe.
Eu conheci a escrita da C. Pam Zhang em 2021 através de uma narrativa sobre imigração também, no caso imigrantes chineses que participaram da construção dos EUA no século 19. Mas esse novo dela se passa no futuro. Um futuro onde a crise climática desestabilizou o ecossistema mundial e bilionários estão certos de que chegarão a Soluções Milagrosas… contanto que possam continuar destruindo os recursos naturais pra descobrir essas respostas. Digamos que é um livro do qual eu me lembro com frequência. *risos nervosos*
A protagonista é uma chef, mas está cada vez mais difícil encontrar emprego em uma realidade onde a produção alimentícia foi tão afetada que é basicamente impossível completar uma receita. (Uma coisa que me chamou atenção no livro foi justamente esse retrato da derrocada lenta, do apocalipse como uma série de passos aos quais a gente vai se adaptando em vez de um desastre repentino.) Bom, nessa realidade calamitosa ela é chamada pra trabalhar pra um bilionário que criou uma colônia onde ele promete que ela vai ter acesso a todo o tipo de fruta, verdura e carne que não existe mais no resto do mundo. O trabalho dela supostamente é ser a chef particular da mansão dele, ajudando a impressionar outros ricaços que possam investir nas pesquisas genéticas que ele desenvolve. Mas tem mais por trás disso, claro. E ao mesmo tempo em que ela acompanha os avanços do que é basicamente um Jurassic Park pra resgatar morangos em vez de dinossauros, ela vai redescobrindo o prazer pela comida e se envolvendo na situação familiar bizarra do bilionário.
Calma que, apesar do que pode parecer pelo título, eu não estou falando pra abandonarmos o e-mail em prol de mensagens de slack, whatsapp ou coisas assim. É exatamente o contrário: Um mundo sem e-mail: Reimaginando o trabalho em uma era de excesso de comunicação (Cal Newport, Ed. Alta Books, tradução de Renan Amorim) é uma avaliação bem interessante sobre como a gente passa a maior parte do tempo trocando comunicações sobre o trabalho em vez de realmente executando esse trabalho. Você já sentiu que estamos em um ecossistema em que estar sempre ocupado é mais importante do que a qualidade do que você entrega? Que você está sempre respondendo mensagens em vez de avançar nas suas tarefas principais? Pois é. O autor argumenta que a comunicação ficou tão fácil que ela está cada vez menos eficiente, e que isso prejudica tanto nossa produtividade quanto nossa satisfação com o trabalho. Eu já tinha gostado bastante de Deep Work, mas esse virou meu livro favorito do autor. Eu gosto que ele aborda casos de profissionais de setores bem variados (trabalhadores de escritório, freelancers, acadêmicos), e sugere mudanças que fazem sentido pra cada uma delas.
Eu só sabia o básico sobre Kathleen Hanna quando fui nos shows do Bikini Kill em março, mas fiquei tão impressionada com o que presenciei que decidi ler a autobiografia que ela lançou poucos meses depois. Muito do que eu faço na minha vida profissional (mapear nichos literários, criar eventos voltados pra diferentes recortes de público, acompanhar grupos de leitores variados pra descobrir interesses que estão despontando) tem a ver com meu interesse por comunidades. Então foi muito bonito chegar na Audio e ver o tanto de cuidado que houve pra montar não apenas um show, mas um evento para celebrar a comunidade que se identifica com a banda. Detalhes do tipo chamar duas bandas de abertura para cada show, e fazer questão que fossem bandas brasileiras lideradas por mulheres (com atenção especial para mulheres queer, periféricas e não-brancas). Ou liberar o acesso ao mezanino sabendo que uma parte do público não conseguiria ver o palco direito da pista, ou preferiria ficar longe do empurra-empurra. Ou produzir um fanzine com uma entrevista com a banda, cujo verso era um pôster que você podia levar pra casa. São detalhes que fazem você se sentir bem-vinda, sabe?
Esse nível de cuidado fez muito mais sentido depois de ler Rebel Girl: My life as a feminist punk (Kathleen Hanna, Ecco, sem publicação anunciada no Brasil). O que ficou para mim foi a história de uma pessoa que passou por tantas violências que precisou catalisar elas na música, e que ajudou a criar um movimento sobre o qual ela não tinha (e nunca tentou ter) controle. Eu gostei muito de conhecer o ponto de vista de alguém que passou a vida inteira aprendendo sobre ser uma figura pública, sobre feminismo, e sobre o que é possível fazer sendo uma pessoa só cheia de problemas próprios. E como olhar para o tanto que ela não sabia no passado não a desanima, mas sim traz a certeza de que ela sempre vai aprender mais.
Bônus: quatro livros que eu li em anos anteriores, mas que ficaram disponíveis para vocês em 2024
Uma história de amor no Ano-Novo Lunar, do Gene Luen Yang e da LeUyen Pham, que eu traduzi pra Editora Alt. Um quadrinho fofíssimo cheio de referências às culturas asiáticas sobre uma garota que acredita que está destinada a ter azar no amor.
Alerta vermelho, da Martha Wells, primeiro volume da série que eu amo sobre um robô assassino que só quer que os humanos parem de se meter em problemas e deixem ele assistir à novelinha dele em paz. A Laura Pohl fez a tradução para a Aleph, e eu fiz a preparação.
Impostora: Yellowface, da R.F. Kuang, que o Yonghui Qio traduziu pra Intrínseca e eu fiz a leitura de sensibilidade. (Rebecca, você tem meu coração todinho. E se você acha que esse é um livro sobre redes sociais, você entendeu errado.)
Interior Chinatown, do Charles Yu, que na verdade ainda não chegou no Brasil como livro (alguma editora traduza ele, por favor!) mas ganhou uma adaptação como série da Hulu/Disney+. É um livro muito inteligente que usa metalinguagem (ele é todo escrito como um roteiro de tv) pra falar sobre quem tem direito de ser protagonista da história, e o quanto minorias se sentem pressionadas a seguir roteiros que nos transformam em personagens, não pessoas.
Ninguém pediu, mas…
Fiquem também com os cinco melhores shows que vi em 2024:
Bikini Kill (Audio, março)
Bertha Lutz (Audio, março)
Punho de Mahin (Audio, março)
Ney Matogrosso (Tokio Marine Hall, março)
Os Replicantes (Sesc Av. Paulista, julho)
Até a próxima!
Muito obrigado por compartilhar as leituras, tanta coisa boa pra colocar na fila! Babel anda aparecendo cada vez mais por aqui, adorei a dinâmica da magia com traduções e a crítica com a apropriação de idiomas. Agora estou super curioso para ler Rebel Girl.
Tô querendo organizar minha lista de 2024 tb! E agora quero ler Garras pq amei Mariposa vermelha!